Walmir França, tata,como se chamam os homens com funções de ogã na tradição angola, enviou-me a programação das comemorações do centenário do Terreiro Bate Folha. Ontem, 24, à tarde, aconteceu um dos eventos programados: a sessão especial na Assembleia Legislativa da Bahia (ALB), proposta pelo deputado Bira Coroa (PT-BA).
Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Manso Banduquenqué- nome sagrado do terreiro-, localizado no bairro Mata Escura, integra o seleto grupo de nove templos afro-religiosos reconhecidos como monumentos e, portanto, dignos de proteção especial pelo Estado . Desses, apenas um não está localizado na Bahia: a Casa das Minas, sediado no Maranhão.
O Bate Folha é o único templo de nação angola do grupo. Dentre os outros baianos, cinco são de tradição ketu: Casa Branca, Gantois, Afonjá, Alaketu e Oxumarê; um de nação jeje- Seja Hundé; e um de culto aos eguguns- Agboulá.
Resistência
Ser alçado à condição de patrimônio brasileiro diz muito sobre a resistência desse templo, afinal, historicamente, nos estudos clássicos sobre as religiões afro-brasileiras predominou a narrativa que invisibilizou ou considerou inferior a herança das práticas religiosas dos primeiros africanos a chegar forçados ao Brasil. Estes vieram de onde hoje estão Angola, a República Democrática do Congo e a República do Congo.
O livro A Cidade das Mulheres, de Ruth Landes, dá uma dimensão do que o fundador do terreiro, Manoel Bernardino da Paixão, de dijina (nome sagrado), Ampumandezu, enfrentou para fazer de sua casa uma das grandes do candomblé brasileiro. O reinado de Bernardino ocorreu em um momento com predominância do poder feminino à frente dos grandes terreiros da capital baiana.
A autora desse livro clássico, belo e rico por sua narrativa cortante, sincera e que, de certa forma, escandalizou a etnografia que evitava tensões, opõe o comportamento comedido de Bernardino ao mais “espalhafatoso” de Joãozinho da Goméia. Mas são duas formas de enfrentamento a um modelo em que os ritos angola-congo eram depreciados, principalmente pelas narrativas de pesquisadores.
Ainda assim, a autora destaca que Bernardino tinha respeito entre as “mães”, forma com que ela se refere a sacerdotisas como Mãe Menininha do Gantois:
“(….) Alguns homens realmente têm a paixão do sacerdócio e estabelecem organizações de culto na linha das tradições das nações de Angola ou do Congo. Há um sacerdote de Angola que dirige o seu próprio templo. É Bernardino; os fiéis o respeitam porque o seu trabalho é bom. É um homem grande e forte, que dança maravilhosamente bem, mas em estilo feminino”. (A Cidade das Mulheres, p.78).
Lembro também que a saudosa ebomi Cidália Soledade, filha de Iroko, consagrada no candomblé pelas mãos de Mãe Menininha costumava contar como se lembrava dos barcos – nome que se dá ao grupo de recém iniciados- levados por Tata Bernardino como visita de cortesia ao Gantois.
De acordo com ela, ao chegar, Tata Bernardino puxava uma cantiga da liturgia de sua nação e era calorosamente acolhido por Mãe Menininha, que respondia em iorubá. Tratava-se de uma festa da diplomacia entre diferentes tradições do candomblé, o que já não é tão comum hoje em dia como lamentava ebomi Cidália.
Para a época relatada por Ruth Landes, final da década de 1930, um homem “adoxu”, rodante em linguagem mais coloquial, era algo até certo ponto escandaloso como fica patente em vários trechos do livro, principalmente nos discursos de Martiniano Eliseu do Bonfim transcritos pela antropóloga norte-americana.
Imaginemos então os desafios travados pelo tata de inquice. Em um contexto em que o transe era coisa para mulheres, eles não só recebia a inquice Bamburecema, senhora do fogo, como abriu um templo consagrado a ela.
Patrimônio verde
Mas a resistência não parou por aí. O Bate-Folha conseguiu manter parte considerável da sua área verde. É o terreiro que possui maiores dimensões no Brasil: são 14,8 hectares com muitas poucas edificações o que garante uma reserva significativa da Mata Atlântica com concentração de árvores sagradas.
O comando da casa continua a ser por linhagem masculina. Após Bernardino reinaram Antônio José da Silva ( Tata Bandanguame); Pedro Ferreira (Tata Dijineuanga) ; João José da Silva ( Tata Nebanji) e Eduarlindo Crispiano de Souza (Tata Molundurê). Atualmente o líder religioso do templo é Cícero Rodrigues Franco Lima (Tata Munguaxi).
Em uma das vezes que lá estive, escutei a história de que os homens lideram porque o posto de rainha é sempre de Bamburecema, a patrona do templo. Mas nem por isso as mulheres têm pouca importância. Basta conhecer a doçura e firmeza, próprias de uma filha de Kayala, a senhora das águas salgadas, de Ganguasese, a dijina de Olga Conceição Cruz.
Iniciada no Bate-Folha pelo sucessor de Bernardino, o tata de inquice Bandanguame, a mameto Ganguasese é a Nengua Gua, a mãe pequena, ou seja, aquela que auxilia o líder religioso do terreiro, principalmente nas questões de fundamentos litúrgicos.
Informações mais detalhadas sobre a história do terreiro estão no bom texto de Júlia Morim, consultora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e da Unesco que vocês podem conferir aqui. É um dos poucos artigos sobre o terreiro porque o Bate-Folha mantém uma trajetória de discrição sobre o seu cotidiano e ainda são exceções os estudos acadêmicos que protagoniza mesmo com a sua proeminência para a tradição do candomblé angola-congo.
Ter uma casa como o Bate-Folha comemorando um século de atividades, em tempos de tantos desafios para o povo de santo, é um privilégio para a Bahia. Daí que a programação diversa que vai se estender até o dia 10 de dezembro é mais do que merecida.
Aqui tem um vídeo, gentilmente cedido por Jamie Lee Andreson doutoranda em História e Antropologia da University of Michigan, que fez ontem o registro da sessão especial na AL.
Confiram a programação comemorativa:
27 de novembro: às 9 horas, missa em homenagem ao Centenário do Bate Folha na Igreja do Rosário dos Pretos, Pelourinho.
3 e 4 de dezembro: das 9 às 17 horas, seminário e exposição fotográfica “100 anos do Terreiro Bate Folha- Travessa São Jorge, 65E, Mata Escura.
10 de dezembro: às 20 horas, Festa de Mbamburucema, Travessa São Jorge, 65 E, Mata Escura
FONTE: http://flordedende.com.br/centenario-do-bate-folha-e-motivo-de-festa-para-o-candomble-brasileiro/